após passado de violências, moradores lutam para manter suas casas

São 18 casas, segundo as contas dos próprios moradores. Todas localizadas numa área erma do que hoje é o município de Bayeux, na Grande João Pessoa, mas que foram construídas antes mesmo de existir cidade. Os moradores dessas residências, inclusive, muitos anos atrás, foram levados compulsoriamente para morar no local.

Eles relatam episódios de muita violência. Mas, mesmo em meio a tanto sofrimento, acabaram por construir ao longo das décadas memórias, identidades, afetos, senso de comunidade. Hoje em dia, contudo, vivem uma insegurança jurídica que pode lhes expulsar de seus locais de moradia.

As casas, a saber, são os imóveis construídos no entorno do Hospital Colônia Getúlio Vargas, fundado em 1941 no então povoado de Barreiras com o objetivo de isolar pessoas que tinham hanseníase, doença infecciosa que na época era chamada de “lepra” e que era alvo de muito preconceito e estigma.

Agora, com o fechamento do Hospital Colônia, há uma indefinição sobre a quem pertence essas casas. E o alerta na comunidade se acendeu em 13 de fevereiro deste ano, quando equipes da Companhia de Água e Esgoto da Paraíba (Cagepa) suspenderam o fornecimento de água desses imóveis sob o argumento de que estão em “área identificada como irregular”.

Os moradores, contudo, reagiram. Conseguiram temporariamente a religação do abastecimento de água, e alegam que depois de tantos anos morando no local devem ser reconhecidos como autênticos donos dos imóveis. Uma comissão de moradores foi criada para lutar coletivamente nesse sentido.

Reunião dos moradores remanescentes das casas construídas no entorno do Hospital Colônia. Phelipe Caldas

Começando pelo fim

É recente a decisão de fechar o Hospital Colônia Getúlio Vargas. De acordo com a Secretaria de Estado da Saúde da Paraíba (SES-PB), isso aconteceu em 2023, quando dois pacientes seguiam sendo atendidos no local.

Um deles foi morar com familiares no município de Ingá e segue sendo acompanhado por uma unidade da Atenção Primária à Saúde. O outro foi deslocado para uma Unidade de Longa Permanência, em João Pessoa. No local, ficaram os escombros do antigo hospital e da estrutura que o cercava. E as casas, ainda habitadas e preservadas, mas agora sob ameaça de desapropriação.

Antigos pacientes ainda moram nas residências. Em geral idosos e com mobilidade reduzida. Nos casos dos imóveis em que os antigos pacientes já morreram, esses foram ocupados pelos descendentes. Filhos e netos que passaram as suas infâncias no local e lá permaneceram.

Há também aqueles que vivem a mistura das duas situações. É o caso do funcionário público Johanderson Carlos Batista. Ele tem 25 anos e é neto de ex-pacientes que foram enviados compulsoriamente ao local em 1984, dezesseis anos antes de seu próprio nascimento. E, até os dias de hoje, moram na região o neto, a avó e o avô. Esse último, com 81 anos de idade, já não consegue mais sair de uma cama.

“Eu cresci por aqui”, resume Johanderson, reafirmando a antiga colônia como seu local de morada e origem de suas memórias mais tenras.

Johanderson Carlos Batista está a frente da mobilização em defesa das casas. Phelipe Caldas

Natural de Guarabira, no Brejo paraibano, Johanderson nunca teve hanseníase, mas sempre conviveu de perto com o preconceito advindo da doença. Ele é um dos principais articuladores na luta coletiva para se iniciar um processo de regularização fundiária e titulação das residências. E diz que eles vão até o fim nessa luta por dignidade e moradia:

As pessoas subestimam quem mora por aqui.

Johanderson Carlos Batista – funcionário público

Por ser jovem, da leva de pessoas que já chegaram ao local nos anos 2000, quando a doença já tinha cura e a opressão estava mais abrandada, as memórias que guarda são boas. “Era um local bonito, com belezas naturais. A gente tinha manga, jaca, oliveira, tudo tirado do pé”, rememora.

Ele fala também, com certa nostalgia, das festas que havia no local, quando toda aquela espécie de vila se reunia nas proximidades da praça central, perto da igreja, para comemorar, se confraternizar, criar laços de comunidade.

Ainda assim, por sempre ouvir as histórias que eram contadas pelos mais velhos, Johanderson não romantiza o lugar onde cresceu, vive até hoje, e de onde agora é ameaçado de ser expulso.

“Tinha beleza, mas escondia uma história cruel”, sentencia o funcionário público.

Restaurante que existia no local virou escombros. Phelipe Caldas

Uma cidade fechada dentro da mata

O antigo Hospital Colônia Getúlio Vargas foi fundado em 1941 e existiu durante 82 anos. Desde 2013, quando a estrutura física começou a se deteriorar de forma mais definitiva, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico da Paraíba (Iphaep) iniciou um processo de tombamento da área, que foi acompanhado de perto pelo Ministério Público da Paraíba. O objetivo era preservar toda a área que fora erguida, mas o processo nunca levou a resultados concretos.

Os últimos registros sobre o tema remontam de 2020, quando a promotora Fabiana Lobo, que à época respondia pela comarca de Bayeux, havia ingressado com uma ação civil pública. Em 2021, contudo, ela deixou a comarca de Bayeux e deixou de responder pelo caso. Procurado para falar sobre o assunto, o Ministério Público da Paraíba não soube dar novos detalhes sobre a ação.

Antiga inscrição indica o Hospital Colônia Getúlio Vargas. Phelipe Caldas

De toda forma, e apesar da fundação do hospital colônia acontecer em 1941, o historiador Emanoel Calixto do Nascimento aponta em suas pesquisas que os primeiros registros sobre a intenção de construí-lo remontam de 1929. Ele é autor da dissertação “A Lepra e a Ordem: uma história da construção do Hospital Colônia Getúlio Vargas – Paraíba (1929-1941)”, defendida em 2019 no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba.

O trabalho foi usado como fonte de pesquisa para essa reportagem. E é esse estudo que destaca que, doze anos antes da inauguração de fato do hospital colônia, a população da antiga cidade de Parahyba já discutia a construção de um “leprosário” para isolar os portadores de hanseníase, nos mesmos moldes de outros do tipo que já existiam em outras partes do país.

Phelipe Caldas

Emanoel Calixto do Nascimento indica que o local inicial deste “dispensário de doentes” seria a capital do estado, e que as obras de um certo Hospital de Isolamento de Jaguaribe chegaram a ser iniciadas na década de 1930, quando a cidade já se chamava João Pessoa, mas que elas acabaram interrompidas por pressão de poderosos da época sob o argumento de ficar “perto demais dos sadios”.

Diante disso, ainda de acordo com a pesquisa de Emanoel, dois locais distantes e isolados da época foram analisados: a localidade conhecida como Santa Cruz da Bôa Vista, nas imediações da Estrada Velha do Tambaú (onde hoje fica o bairro de Tambaú) e a Mata do Xém-Xém, no povoado de Barreiras, que só em 1959, dezoito anos depois da inauguração do hospital colônia, se transformaria em município de Bayeux. Prevaleceu a segunda opção justamente por ser a mais isolada delas.

Era uma área de mata atlântica, e estima-se que ao longo das décadas cerca de 400 pacientes passaram pelo local. Foram construídas ruas, igreja, ambulatório, parlatório, cinema, delegacia, restaurante, capela, cemitério, casas.

Hospital Colônia Getúlio Vargas foi erguido em área de mata atlântica e isolado. Phelipe Caldas

Não era à toa toda essa estrutura. Na verdade, tudo isso era pensado dentro de um “projeto higienista”. A construção de uma espécie de “zona doente” em que “o enfermo esquecesse o mundo que deixou” para trás. Nas palavras escritas em jornais da época, resgatadas na pesquisa de Emanoel, o objetivo era que o enfermo esquecesse e fosse esquecido pelos parentes sadios que ficaram para trás e que lá simplesmente morresse, já que a doença à época “era caracterizada como uma sentença de morte”.

A estratégia não funcionou, claro. E o fracasso desse projeto de esquecimento dos doentes que lá foram enviados é um das origens das muitas violências que foram registradas no local.

“Eu queria que o passado voltasse diferente”

Maria das Graças da Costa Nascimento tem mais de 50 anos de vivências no Hospital Colônia de Bayeux. Ela é filha de um casal que tinha hanseníase e foi levado compulsoriamente para o local. Naquela época, não havia diálogos. Os dois foram retirados de suas casas e “depositados” ali, obrigados a morar isolados de todos os demais que conheciam.

Maria das Graças da Costa Nascimento, 64 anos. Phelipe Caldas

Foi nesse contexto que Maria das Graças nasceu, no início da década de 1960. Ainda na primeira infância, com menos de um ano de vida, foi separada dos pais e levada para o Educandário Eunice Weaver, que funcionava nas proximidades do Hospital Colônia e tinha um caráter segregacionista. Era lá onde ficavam os “filhos dos leprosos” que não tinham para onde ir e eram proibidos de morar na colônia, com os pais.

“Eu fui levada à força. E quando criança apanhava quase todos os dias”, desabafa Maria das Graças.

Ela conta que os castigos físicos e psicológicos eram constantes, que no educandário havia um “quarto escuro” que funcionava como isolamento e local de castigo e que nada que vinha de fora era permitido entrar. “Os presentes que a gente ganhava eram jogados fora. Nada chegava para a gente. E as professoras chamavam nossos pais de ‘papa-figos’. Por um período da minha vida, eu cheguei a ter medo da minha mãe”, relembra, entristecida.

Os 14 primeiros anos de sua vida foram no educandário. Época, por sinal, de muitos traumas, muitas lembranças doloridas. Ela conta, por exemplo, que quando fazia xixi na cama, ainda pequena, era obrigada a segurar o colchão na cabeça, num pátio em meio ao sol, como forma de punição. E os pais eram proibidos de chegar perto dela. Só uma visita por mês era autorizada e isso mesmo sem contato físico. Ela ficava na parte de dentro do muro, a mãe e o pai obrigados a permanecerem do lado de fora.

“Perdi meu pai aos 13 anos e não pude velá-lo”, lamenta Maria das Graças.

Pouco tempo depois da morte do pai, no entanto, ela se revoltou, pulou o muro do educandário num dia de visitas da mãe, lhe abraçou pela primeira vez na vida. Por causa disso, foi severamente punida. Castigos físicos intermináveis, segundo sua lembrança. Que serviu como estopim para que, aos 14 anos, ela resolvesse fugir para sempre do local.

Perambulou por Campina Grande, arranjou subempregos e sempre escondeu que era “filha de leprosos”. Ficou na cidade por alguns anos, cansou dos maus tratos que também sofria de alguns patrões, resolveu voltar para o Hospital Colônia.

Aos 20 anos de idade, escondida do Estado, de forma clandestina, foi morar pela primeira vez com a mãe. Na mesma casa que herdou dela e que vive até hoje. Ao falar da possibilidade de ser despejada, a mulher sentencia:

Aqui eu tenho uma história. Daqui eu não saio.

Maria das Graças da Costa Nasciment – moradora do Hospital Colônia

Aos 64 anos, não esconde as dores acumuladas. Conta com certo ar de revolta o comentário que, ela diz, escutou certa vez de uma autoridade que visitava o local: “É para deixar cair”, teria dito o homem.

Igreja já não tem mais teto e restou as ruínas. Phelipe Caldas

E, com o tempo, ela de fato viu as coisas ruírem. O hospital foi abandonado e virou escombros. A igreja perdeu o telhado num dia de temporal e está condenada. O cemitério, onde os pais estão enterrados, foi deixado de lado, com covas destruídas, sem indicações sobre os locais exatos onde os corpos estão enterrados.

Para ela, é mais uma violência, mais um afastamento compulsório de seus pais, mais uma fonte de dores acumuladas. É quando ela se entrega, admite o cansaço, a tristeza, a revolta.

“Eu queria que o passado voltasse diferente. Todo mundo deveria ter o direito de abraçar pai e mãe”, finaliza.

No cemitério abandonado, Maria das Graças tenta localizar onde estariam os corpos de seus pais. Phelipe Caldas