Nos últimos anos, a educação superior brasileira viveu mudanças regulatórias que impactaram profundamente a forma de planejar, ofertar e avaliar os cursos. Recentemente, a Nota Técnica nº 74/2024, da Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior do Ministério da Educação (Seres/MEC), consolidou uma nova fase relativa à formação pedagógica e à segunda licenciatura ao reafirmar os parâmetros estabelecidos na Resolução CNE/CP nº 4/2024. Trata-se de um cenário que impõe desafios consideráveis, mas também abre espaço para inovação e reposicionamento estratégico no âmbito das instituições.
Historicamente, essas duas modalidades foram concebidas para responder a uma necessidade clara: habilitar profissionais graduados sem licenciatura, ou licenciados em uma área específica, a exercer o magistério em outra. No entanto, o acúmulo de interpretações equivocadas e a multiplicação de ofertas de baixa qualidade levaram à necessidade do redesenho regulatório. Sim, não é exagero dizer que estamos diante de um novo marco regulatório. A nova referência não apenas redefine prazos e cargas horárias, mas estabelece uma lógica mais seletiva e qualitativa para a oferta desses programas.
A Resolução CNE/CP nº 4/2024 havia reafirmado uma premissa muitas vezes ignorada: não existe formação pedagógica em Pedagogia, nem a possibilidade de que pedagogos obtenham segunda licenciatura em outra área, e vice-versa. Embora essas vedações tenham sido sinalizadas pelo Conselho Nacional de Educação em julho de 2024, a Nota Técnica veio elucidar e publicizar o entendimento da Seres/MEC sobre o tema. O recado foi claro: cursos rápidos e de baixo investimento acadêmico ficaram no passado.
A exigência de CPC mínimo 4, a necessidade de curso reconhecido na mesma habilitação e modalidade, e a ampliação da carga horária mínima elevam o patamar de entrada. Além disso, a duração mínima de dois anos para a formação pedagógica e de um ano e meio ou dois anos e meio para segunda licenciatura, conforme a afinidade da área, rompe com a lógica dos cursos acelerados.
Ao mesmo tempo, há uma mudança estrutural no formato. A proibição do modelo integralmente a distância e a exigência do semipresencial, combinadas com maior presencialidade, vão alterar a dinâmica de planejamento e custos no âmbito das instituições de educação superior. Embora a Portaria MEC nº 381/2025 ofereça um rito simplificado para essa transição, a verdade é que o tempo para ajustes será curto, e a complexidade, alta.
O prazo de transição até 1º de julho de 2026 precisa ser interpretado com realismo. É um período para encerramento ordenado de ofertas iniciadas sob as regras anteriores, não uma licença para manter modelos incompatíveis. E aqui reside um ponto crítico: as licenciaturas plenas já em andamento deverão se alinhar imediatamente aos parâmetros atuais. Isso significa rever Projetos Pedagógicos de Cursos (PPCs), atualizar matrizes curriculares e garantir a viabilidade de conclusão no prazo legal.
A criação da Prova Nacional Docente (PND), vinculada ao Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), é outro elemento que altera a dinâmica das licenciaturas. Agora, os cursos deixam de ser avaliados no ciclo tradicional e passam a ser submetidos à prova anualmente. Mais do que um instrumento de avaliação, a PND poderá servir como critério para concursos públicos de professores, tanto federais quanto de estados e municípios, um incentivo para que os estudantes se comprometam com seu desempenho.
Apesar de as novas regras visarem a qualidade da formação pedagógica e da segunda licenciatura, cabe refletir sobre os possíveis efeitos colaterais dessas mudanças. O Brasil já enfrenta uma escassez preocupante de professores, especialmente nas áreas de Ciências, Matemática e Língua Portuguesa. Ao impor regras mais restritivas e eliminar formatos que ampliavam o acesso à habilitação docente, corre-se o risco de aprofundar esse déficit, caminhando para um “apagão” de profissionais.
Esse movimento, por sua vez, entra em tensão com o compromisso assumido pelo próprio governo federal de fortalecer a carreira docente, a exemplo de iniciativas como o programa Pé-de-Meia para estudantes de licenciaturas e Pedagogia. É preciso que a regulação caminhe de forma coerente com essas políticas de estímulo, garantindo que o rigor normativo não inviabilize a formação de novos educadores.
No que se refere ao contexto das instituições, ao reduzir o espaço para improvisos, o novo marco pode funcionar como um catalisador de diferenciação. Aquelas que investirem em excelência acadêmica, infraestrutura adequada e modelos pedagógicos inovadores terão vantagem competitiva.
A educação de qualidade não é fruto do acaso, mas de planejamento, investimento e compromisso. E, diante desse novo cenário, quem souber alinhar estratégia e regulação não apenas sobreviverá, mas se destacará em um setor cada vez mais competitivo e regulado.
Fato é que o cenário atual resulta de uma trajetória marcada por idas e vindas regulatórias que se arrastam há mais de uma década. Entre as tentativas de atualização da Resolução CNE/CP nº 2/1997, estão a Resolução nº 2/2015 e a Resolução nº 2/2019, nunca plenamente implementadas. Esse histórico de descontinuidade e falta de implementação plena culminou na Resolução nº 4/2024, que agora se apresenta como oportunidade e desafio para corrigir distorções acumuladas e estabelecer parâmetros claros.
A mensagem central que se extrai desse novo marco é a de que a sobrevivência e o crescimento sustentável das ofertas de formação pedagógica e segunda licenciatura dependem de qualidade aferida, conformidade regulatória e gestão institucional estratégica. Ignorar essa realidade é abrir mão da competitividade e assumir riscos que podem comprometer não apenas instituições, mas a própria capacidade do país de formar os professores de que tanto precisa.
Janguiê Diniz – Diretor-presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), secretário-executivo do Brasil Educação – Fórum Brasileiro da Educação Particular, fundador e controlador do grupo Ser Educacional, e presidente do Instituto Êxito de Empreendedorismo.